Este texto foi publicado no livro Radio Art Zone, que é um dos produtos do festival RadioArt.Zone do qual a Pipa Musical, meu antigo projeto de rádio-arte participou.
As ondas de rádio são uma força independente inerente a existência do universo, existem sem a vontade humana. Mas a organização de informações na forma de ondas de rádio que carregam estas informações e podem, depois, ser demoduladas e compreendidas é uma tarefa bem humana. E exige bastante trabalho. Dependendo do tipo de informação que se quer transmitir – e que seja recebida – a elaboração necessita do trabalho de um grupo de pessoas. Pesquisa, roteiro, seleção, narração, sonorização – passando por instalação dos equipamentos, edição, até ergonomia. Mas tanto a forma de produzir conteúdo quanto a de recebê-lo precisam de uma sofisticação cognitiva que se faz necessária ser desenvolvida. A promoção da democratização dos meios de comunicação para que ela exista sem hierarquias atendendo a todos os agentes da comunicação, que são produtores de cultura, na América Latina recebe o nome de educomunicação e é uma prática presente desde os anos 60. A educomunicação também solicita que a comunicação se dê em forma de diálogo, de troca de experiências e informações, de ações de enriquecimento e desenvolvimento das ideias dos participantes. Como fazer isso usando um meio que naturalmente tem uma via única como o rádio?
Para produzir conteúdo um grupo precisa discutir conteúdo, por vezes, precisa redigir. A parte de redigir um texto remete facilmente ao conteúdo desenvolvido em educação escolar em uma aula de línguas, mas todas as outras atividades relacionadas também são materiais de estudo. Assim, a estrutura toda de produção de conteúdo de rádio se mostra muito útil para a educação formal. Mesmo em um ensino nos primeiros anos escolares, ainda distante das formações em rádio e TV das faculdades, a forma e o conteúdo das mídias conseguem ser atraentes para os alunos estimulados a criarem revistas e programas para TV e rádio. A ideia de ter a expressão amplificada e propagada são muito atraentes.
Em um programa de rádio elaborado por um grupo, aquele que expõe a voz não é o personagem principal. Nem é a informação passada, nem o som. O processo de elaboração pode ser o mais importante. A própria criação coletiva ainda em seu ato de criação. A própria liberdade de criação.
Vou usar dois casos para ilustrar o uso do rádio na educação no Brasil. Um deles é o do projeto Educom.rádio Centro-Oeste. Uma iniciativa do Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo em conjunto com o Ministério da Educação e com as secretarias de educação locais. Aconteceu em 70 escolas da região centro-oeste do país em três estados entre os anos de 2003 e 2006. Entre as escolas atendidas haviam centros de ensino em comunidades quilombolas e indígenas. Cada escola ganhava um kit de rádio com mesa de mixagem de oito canais, microfones, tocadores de CD e fita cassete e mini transmissores.
Estes transmissores emitiam diretamente para duas caixas receptoras amplificadoras, presentes no kit, que operavam em uma faixa de frequência própria, diferente da faixa de frequência do rádio comercial. De modo que a recepção só acontecia em um ambiente restrito dentro da área da escola. A estrutura deste mini estúdio era usada pelas crianças para tocar músicas, mandar recados, fazer reivindicações. Grupos eram organizados para transmitirem em diferentes horários durante seus intervalos, entrada e saída das aulas. Organizavam-se para selecionar as músicas que queriam transmitir, pensar nas mensagens que queriam propagar, disputavam a oportunidade de fala. Decidiam em conjunto o que gostariam de tornar público sobre si mesmas, fazendo suas vozes empoderadas atravessarem as paredes das salas de aula.
Esta iniciativa deu força aos alunos estimulando que se expressassem aprendendo a linguagem radiofônica. A multiplicação dos receptores das mensagens os provocou a responsabilidade sobre o que era transmitido. Houve uma necessidade de administração dos grupos que usavam o equipamento para que ele não fosse danificado ou mal utilizado, despertando nos participantes o cuidado pelo bem público. Também acontecia o gerenciamento das vontades do grupo em uma consideração de cada intenção individual, resultando cada transmissão em uma manifestação da pluralidade dos escolares.
A Educomunicação também se presta muito ao ensino não-formal, aquele que acontece longe das estruturas das escolas. Para ilustrar esta modalidade conto um pouco da experiência da professora Grácia Lopes Lima com o projeto Calaboca Já Morreu.
A princípio eram duas crianças. Depois, estas duas foram chamando outras e o grupo chegou a dez. Iam ao estúdio conversar – esta parte é importante – conversar por duas horas, e não ler roteiros. Existiam, sim, pautas e uma direção da Grácia, mas havia a intenção de preservar a liberdade de fala delas. Aos poucos, as crianças foram encontrando preferências em outras funções na produção do programa, chegando a ter crianças operando as mixagens e até atendendo ao telefone da emissora.
É preciso colocar que a intenção da professora Grácia não era desenvolver a educação da maneira que uma escola faria – ensinando a língua portuguesa ou mesmo técnicas de mixagem ou edição de som, por exemplo. A vontade era que o grupo desenvolvesse as expressões individuais e coletivas usando a liberdade criativa proporcionada por aquela via técnica, e que ali houvesse uma criação coletiva que tivesse a cara do grupo.
Quanto ao resultado sonoro, pode-se dizer que sua força era imensa! A linguagem, a idiossincrasia, as características de um grupo de crianças raramente são apresentadas no rádio. Grácia se refere ao resultado como uma passarinhada. O principal que era transmitido no programa não eram as informações organizadas por elas – era a própria linguagem das crianças. Não apenas na maneira de dizer, mas na maneira de organizar, de editar, de escolher os temas. Esta foi uma iniciativa transgressora que só pôde acontecer em um ambiente que não tinha intenção comercial – pois a maneira de comunicar das crianças costuma passar longe da formalidade em que o rádio convencional operava.
A possibilidade de uso de estruturas de rádio na educação é importante para promover novas formas de comunicação e expressão. A partir do acesso às técnicas e meios, o uso e subversão solicitados pelas práticas artísticas são estimulados. A Educomunicação que acontece no Brasil promove a familiarização com equipamentos e estruturas dos veículos de comunicação para entendê-los, saber criticá-los e, principalmente, poder participar destes meios de comunicação. A partir de seu uso, a rádio-arte aparece naturalmente.
Considerando que um smartphone ou um computador com acesso a internet já tem capacidade suficiente para permitir que alguém consiga transmitir um conteúdo de rádio, podemos dizer que o acesso a produção está facilitado. As próprias plataformas de distribuição de conteúdos ditam suas estéticas e ensinam a produção de acordo com o que consideram mais vantajoso. É interessante notar que a maioria das produções feitas para veiculação nas plataformas é em formato de vídeo, e não de rádio – o que geralmente requer mais tráfego de dados e trabalho de produção. Tanto em som quanto em imagem, enquanto não houver uma educação que promova o olhar crítico e a pluralidade de referências que a democratização da produção audiovisual pode trazer, teremos menos rádio-arte e um conteúdo de rádio pautado pelas intenções comerciais dos veículos de comunicação.